Escola do Recife é referência do cinema brasileiro contemporâneo

Jornal A Tarde, Salvador, quarta – feira 4 / 12 / 2013  Caderno 2
por Raul Moreira
Jornalista e cineasta
Diante da sucessão de produções e, principalmente, de seu vigor e qualidade, inclusive reconhecida internacionalmente, como é o caso de O Som ao Redor, entre outros, talvez não seja exagero afirmar que Pernambuco, ou melhor, a Escola do Recife, tornou-se referência da sétima arte brasileira, como o é o Cinema Novo.
No entanto, apesar de certa forma incorporar temáticas que foram caras ao Cinema Novo, a Escola do Recife diferencia-se dos filmes de Glauber Rocha e de seus pares. Isso porque, por conta dos tempos, que são outros, não há necessariamente na sua práxis a busca de um “cinema revolucionário”, militante, mas é impossível negar o sentido de urgência e o flerte com a historicidade presentes no movimento.
E, o que pode parecer reducionista, aprisionante ou simplesmente regionalista na Escola do Recife, pelo fato de ela abarcar quase tão somente o mundo pernambucano, acaba ganhando um sentido inverso. Resumindo: a forma através da qual desenvolveu-se, incluindo os seus processos estéticos, muitas vezes audaciosos, garante-lhe um estilo particular e que a separa de um outro cinema brasileiro contemporâneo.
Tatuagem, de Hilton Lacerda, comprova a boa fase do cinema de Pernambuco

Tatuagem, de Hilton Lacerda, comprova a boa fase do cinema de Pernambuco

 

Precedentes
Diante de tal constatação, fica a pergunta: quais foram as condições a partir das quais os cineastas pernambucanos elevaram-se a tal patamar? Vale dizer que, como registro, o sociólogo Gilberto Freyre afirmou, em Sobrados e Mucambos, que nas primeiras décadas do século passado o Recife flertava mais com a Europa do que propriamente com a então provinciana São Paulo e o “afrancesado” Rio de Janeiro.
Sim, o Recife, com a sua forte influência judaica e abrigando a famosa Escola de Direito, ostentou no século passado dois ciclos representativos de cinema (décadas de 20 e 70), movimentos literários, teatrais, de artes plásticas, enfim, havia efervescência cultural e cosmopolitismo naquela que era considerada a capital do Nordeste.
Depois, a partir da segunda metade do século 20, o Recife tornou-se celeiro de uma forte cultura política de esquerda, influenciada pelo Partido Comunista. Não é à toa que as suas Ligas Camponesas se fizeram famosas, como também personagens do calibre de Miguel Arraes e de Dom Hélder Câmera, dois inimigos da ditadura militar. Para completar, a partir dos anos 90 do século passado aconteceu um processo de reabilitação das culturas populares: na terra do frevo, as tradicionais festas dos maracatus, dos caboclinhos, dos cocos de roda, das cirandas, obra dos povos subjugados, saem do Pernambuco profundo e, sem pasteurização, ganham a cena, ao mesmo tempo em que explode o movimento manguebeat, liderado pelo saudoso Chico Science.
Foi embebido em tal caldo substancioso que moldou-se o amálgama da Escola do Recife. E essa geração, a primeira, não é egressa do Super-8, como aconteceu com o time de longas metragistas que afirmou-se na última década em Salvador: era, sim, gente que trabalhava com suportes de vídeo. Dois deles, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, aliás, assinam a direção de Baile Perfumado, de 1996, que põe fim a um período de seca de mais de 20 anos sem se produzir longas em Pernambuco. Mais: ao lado de Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, o filme marca a retomada do cinema brasileiro,
após o fim da Embrafilme.

 

Efervescência
Daí em diante, como em um movimento cinestésico, o que não havia passa a existir, o que era frágil se fortalece: por conta do apoio dos governos locais, através de editais regulares, a engrenagem se deu em toda a cadeia produtiva, criando uma atmosfera que uniu vontade de fazer, criatividade no limite da anarquia e profissionalismo, sem falar das escolas de formação. E o resultado é que o cinema pernambucano, como um rolo compressor, continua a mostrar a sua cara, com curtas e longas que arrematam prêmios em festivais nacionais e internacionais.
Não necessariamente em ordem cronológica, títulos como Amarelo Manga, Baixio das Bestas e A Febre do Rato, de Cláudio Assis, Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, e o ousado Tatuagem, de Hilton Lacerda, em cartaz, só para citar alguns, são exemplos da excelência da Escola do Recife. Para coroar de êxito o vigor e o talento da Escola do Recife, o premiadíssimo e indicado do Brasil ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, com sua simplicidade e síntese desconcertantes, estabelece uma nova referência de universalidade: como raramente aconteceu em sua cinematografia, um filme brasileiro volta a ser objeto de discussão e culto no exterior.
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