Entrevista com o cineasta Edgard Navarro publicada no jornal A Tarde, capa do Caderno 2+, em 21/09/2017, em que fala sobre seu filme Abaixo a Gravidade, que vai encerrar o 50º Festival de Cinema de Brasília neste domingo.
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ENTREVISTA Edgar Navarro, diretor de cinema

“Sobre não ser compreendido, esse risco sempre esteve em meus filmes”

RAFAEL CARVALHO
Especial para A TARDE

A estreia tardia de Edgard Navarro no longa-metragem, depois de longa carreira experimentando e provocando com outros formatos, aconteceu no Festival de Brasília, em 2005, quando Eu Me Lembro venceu seis troféus Candango, incluindo o de Melhor Filme. Doze anos depois, ele voltará ao festival, agora para a festa de encerramento, próximo domingo, para exibir o inédito Abaixo a Gravidade. Se a verve navarriana sempre esteve muito associada à irreverência e à anarquia, é muito curioso perceber que o novo filme aponta para certa placidez, na busca por uma transcendência da quietude e da paz de espírito, em meio a um mundo caótico. E essa é a brecha que o filme aproveita para também não se eximir do delírio de retratar uma Salvador cheia de contradições, que se refletem nas neuras e crises dos personagens. Na trama, Bené (Everaldo Pontes) é um senhor que vive recluso no interior, mais especificamente no Vale do Capão, fruindo uma vida zen-budista e de bem com o entorno natural. Encanta-se pela jovem Letícia (Rita Carelli) e se vê tentado a seguir os passos dela, que levam à capital baiana. E esbarra em uma série de personagens e em nas próprias crises. Navarro chega em Brasília para coroar a presença marcante de filmes baianos apresentados no festival. O diretor também conversou com A TARDE sobre um novo filme que está prestes a nascer.

O Festival de Brasília te consagrou em anos anteriores. Porta de Fogo, Lin e Katazan, Eu me Lembro, todos foram premiados lá. Como é voltar este ano?
Será uma excelente oportunidade para estrear o filme, termômetro sensível e preciso, a plateia do Cine Brasília – exigente e amante do bom cinema. De resto, uma emoção tranquila de quem já deu muitas voltas nessa maratona e sabe que está na hora de passar o bastão para a vitória do coletivo. E fora Temer!

Há quanto tempo você vem preparando Abaixo a Gravidade e o que esperar dele?
A ideia do roteiro pintou quando eu estava finalizando O Homem que Não Dormia, em 2011; são portanto seis anos de gestação até o parto. Trata-se de um filme da maturidade, quando as correntes impacientes e revoltas das cascatas já procuram a calma do remanso, antes de se fundir ao mar…
Não espero que todos aplaudam esse filme de outono, mas estou certo de que ele encontrará admiradores, porque traz a vivacidade e sinceridade de sempre… E fora Temer!

Como você enxerga Abaixo a Gravidade dentro de sua filmografia? Que Edgard Navarro é esse que fez esse filme?
Sou um homem mais sereno e consciente do potencial do cinema e da importância dele na economia do mundo; sei também que as gerações atuais têm aprendido a lidar melhor com as novas linguagens e sintaxes; mais do que os cineastas do passado (e acho que, como cobra, só agora estou me livrando dessa casca), os cinemeiros de hoje, raposas do século XXI, irão dar o esperado zignal no audiovisual capitalista, fazendo-o provar do próprio veneno; não sei como isto se dará, apenas sinto. Além do mais, por conta da madureza, “hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe, e só levo a certeza de que muito pouco sei, ou nada sei…”. Mas fora Temer!

Abaixo a Gravidade é uma frase dita pelo protagonista de seu filme SuperOutro. Existe uma relação entre os dois ou se trata de um intercurso entre seus trabalhos?
Ambas as coisas. Se pensarmos na ideia de leveza, de alegria louca e irresponsável pelas quais – graças a deus – sempre fui assolado, então podemos falar de uma relação bem próxima entre os dois filmes; permanece o desejo quase premente de voar… As narrativas, entretanto, guardam claras diferenças entre si; a loucura não está na personagem central, mas na realidade que o circunda e o empurra para o lugar da escolha entre a extrema compaixão e o transe – exo ou esotérico; ou, se olharmos bem, sem escolha possível – pelo menos nesse mundinho de três dimensões… e aí os dois filmes novamente se encontram: no desvão solitário do absurdo, da bipolaridade, da macumba e da ópera – Mahler versus Exu na disputa do orí do Pensador de Rodin encarnado num catador de lixo: Mierre!

Existe em Mierre uma vontade de voar também, como havia no personagem de SuperOutro, não? Aí essa ligação é maior?
Sim, sem dúvida. Acresce que aqui nosso Mierre é sequelado por um trauma infantil colocado por Galego, há um suicídio em curso, sim. Como no SuperOutro, disfarçado em desejo de voar…  Mas ainda há um acordo tácito com a realidade, uma estratégia de sobreviver, seja catando coisas no lixo, seja bancando o homem-estátua-pensador… afinal, libertado pelo Exu que é guia dele, descoberto com a ajuda de Bené.

Aliás, Bené encarna uma dimensão religiosa-xamânica-medicinal que reúne as forças de cura do Exu junto com a filosofia budista e ainda os saberes populares. Mas ele também entra em convulsão existencial, muito por conta dos problemas de saúde. Como você idealizou esse personagem em crise?
A inspiração inicial pra construir Bené foi ter bem perto de mim o querido amigo Luiz Paulino dos Santos, a quem o filme é dedicado; nos últimos anos de vida dele testemunhei a aspiração de transcendência, forjada em anos de solidão e força de vontade, fé e obstinação, ser estremecida por dúvidas atrozes de natureza comezinha, simplória; e ali vi um espelho muito fiel do que acontece comigo mesmo e coma maioria daqueles que aspiram às alturas espirituais; depois foram se agregando outras características de pessoas diversas, cujos traços pertenciam àquele mesmo universo…

Já Eugênio/ Maisselfe [personagem de Bertrand Duarte] vive uma dimensão da crise de modo mais lunático, mesmo que chegue a um ponto de razão mais ao fim do filme. Qual conexão você quis fazer inserindo esse personagem na trama?
Maisselfe é um homem bem sucedido no mundo dos homens, dos negócios, mas completamente infeliz diante de si mesmo; depois de tê-lo concebido e batizado, percebo que ele é o que eu próprio seria se não tivesse me rebelado contra o que minha família (e o ‘sistema’, de modo inequívoco) queria que eu fosse: um homem bem colocado socialmente, cumprindo um papel na sociedade – de marido, de pai, de homem normal. Aliás, há uma citação explícita do Teorema, de Pasolini, que ajuda o fruidor a decifrar o enigma da personagem; o artista fica sendo Serguei Eisenstein!

Apesar de o filme conter uma série de signos e referências que costumeiramente você planta em seus filmes, em Abaixo a Gravidade eles apontam para muitos caminhos, e a narrativa possui certa ousadia na forma de conectá-las. Qual o lugar do risco no seu novo filme?
Acho que você está falando do risco de não ser compreendido por todos os que assistam ao filme; neste sentido, o risco sempre esteve presente em meus filmes; acho que é o lugar de quem se propõe a desvendar mistérios numa zona mais ou menos obscura da alma humana…

Assim como em SuperOutro, o filme também volta a observar uma Salvador contemporânea, cheia de contradições e mudanças. Como você enxerga a cidade hoje? Como você quis retratá-la no filme?
Já na sinopse a gente enuncia: armado apenas com as asas da quimera, ele transita pela fratura exposta de uma Salvador conflagrada – opulência versus miséria, escombros, sordidez…  O mote: o desejo altivo de transcender e derrotar a dor, a tristeza e o espírito de gravidade, aquele que faz cair todas as coisas, opondo-lhe leveza, alegria, humor e liberdade. Para cujo fim contará com a ajuda de forças cósmicas intangíveis… por exemplo:um asteróide peregrino que veio dar um rolê na Bahia… ou um Exu aplicado, capaz de interromper insondáveis conjecturas do Pensador de Rodin… Laroyê, Exu!

Navarro em ação no set de filmagem: irreverência é uma marca (foto: divulgação)

E essa figura de O Pensador, de Rodin, é um signo muito presente no filme, e o personagem de Bertrand chega a dizer que é “a síntese do estado de espírito do homem moderno, esmagado pelo peso de sua busca racionalista”. Você também pensa dessa forma?
Sim: esta é a viga mestra do filme, no sentido filosófico; com todo o aprendizado da obra, que remonta há tantos séculos, o ser humano, paradoxalmente por mais que se aproxime da compreensão do mistério último da existência, distancia-se mais e mais da existência tranquila e harmoniosa. Penso que essa apreensão será súbita como uma iluminação búdica – e está mais para o transe ou o êxtase místico do que para o acúmulo de programas acadêmicos e hermenêuticos.

Para você, que vem de outra geração (manteve relação com o cinema marginal, passou pela fase do Super-8, da película e agora pega a transição para o digital), como é fazer cinema na Bahia hoje? Quais as dificuldades?
Fazer cinema na Bahia sempre exigiu uma postura de resistência por se tratar de uma atividade mais custosa do que as demais formas de arte, e por não termos um retorno popular que tem, por exemplo, a música. Sempre nos vemos às voltas com os funis dos editais de verbas públicas a fundo perdido – ou quase isso. Resulta que as políticas por trás da cultura assumem uma importância desproporcionada… os gestores lidam com recursos parcos…  o próprio ministério quase seria extinto, não fosse pela grita de uma falange consciente da classe… O trabalho que vinha sendo feito no MinC, até o ilegítimo usurpar o poder, começava a alavancar um processo de produção pelo qual, creio, devemos continuar lutando. De modo que… Fora Temer!

 

Mesmo a fase serena de Navarro pode ser anárquica e perturbadora

Há muitos signos e elementos amalgamados em Abaixo a Gravidade. A maioria deles faz parte de um imaginário que se criou e se alimentou pela obra pregressa de Edgard Navarro, esse provocador incansável, com filmes dos mais experimentais aos de maturidade transcendental.

Outros são reflexo de uma nova fase que o cineasta vive, mais serena, como ele mesmo diz. Porém, certa placidez que se encontra aqui não é nunca domesticada como forma de entender e se colocar no mundo: Abaixo a Gravidade é, também, um filme sobre crises atuais do homem moderno cosmopolita.

Filho tardio do cinema marginal que transou outras ondas, em outros tempos, ele encontra agora em Bené (Everaldo Pontes) um modo de olhar para os arroubos da paixão ainda capazes de tomar de assalto um pacato senhor e transtorná-lo, como nos deixa transtornados o mundo caótico representado na tela.

Abaixo a Gravidade possui a verve do delírio e do despautério (inclusive cinematográfico. Ao abusar dos efeitos especiais e da piração metafísica, tão incomuns em um filme como esse), moldada nesse novo modo sereno de olhar o mundo, mas sem deixar de lado o caráter desestabilizador que faz parte da gramática navarriana.

Rafael Carvalho

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