Em sua edição nº 388 de 22 de novembro de 2015 a revista Muito, encarte dominical do jornal A Tarde, apresenta entrevista com o cineasta baiano Sérgio Machado, diretor de filmes como Cidade Baixa (2005) e Quincas Berro D’Água (2010). Entrevistado durante o Panorama Internacional Coisa de Cinema, ele fala sobre política, questões sociais e, claro, cinema.

muito_sergio_machadoReportagem: Eron Rezende
Fotos: Fernando Vivas

Fonte: http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1728503-a-critica-ao-bolsa-familia-e-desinformacao

 

 

“A crítica ao Bolsa Família é desinformação”

Sérgio Machado, 47, se diz pós-graduado em Brasil. Assistente de direção nos filmes Abril despedaçado (2002) e Central do Brasil (1998), o então aspirante a diretor cruzou o Nordeste atrás de locações e atores. Dez anos depois, Machado ampliou a geografia e se debruçou sobre as cinco regiões do país atrás dos beneficiados do programa Bolsa Família. A viagem, além de “uma fotografia mais nítida sobre os brasileiros”, como ele diz, rendeu-lhe o documentário Aqui deste lugar, lançado no mês passado em São Paulo e apresentado na última edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador. O longa, ainda sem previsão de estreia comercial na Bahia, tem suscitado paixões. “É um filme feito para entender as mudanças sociais da última década, não é partidário”, diz Sérgio Machado, que ganhou a pecha de “petista” e “marqueteiro de Dilma”. A produção é uma gota na torrente que a carreira do diretor de Cidade Baixa (2005), Quincas Berro d’Água (2010) e Tudo que aprendemos juntos (2015) – premiado, no início desde mês, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – deve se transformar nos próximos anos. Em confecção em sua agenda estão o documentário A luta do século, sobre a disputa entre os pugilistas Holyfield e Todo Duro, o drama O adeus do comandante, baseado no livro de Milton Hatoum, e a animação Arca de Noé, produzida por Walter Salles. “Tenho trabalhado intensamente. Como nunca, talvez. Mas cinema é algo louco. Você faz hoje para exibir daqui a dois, três anos”. À Muito, Machado fala sobre tempo, política e luta de classes.

Abril_despedaçado-1Cena de Abril Despedaçado, no qual foi assistente de direção, e dos seus filmes Cidade Baixa, Quincas Berro D’Água, Tudo que Aprendemos Juntos e Aqui Deste Lugar

cidade-baixa quincas_berro_dagua tudo_que_aprendemos_juntos aqui_deste_lugar 

 

O documentário Aqui deste lugar foi finalizado há um ano e foca os brasileiros que deixaram a pobreza extrema, via Bolsa Família. Hoje, essa é a parcela da população que mais sofre reflexos da crise econômica. O filme não pode soar como um retrato brando de um Brasil pré-crise?
Não sei até que ponto o atual momento político mexe na percepção do público. Quando começamos o documentário, a Dilma era a presidente mais popular da história do país. Agora, está do jeito que está. Ou as pessoas amam ou odeiam. Curioso é que o filme ficou pronto no ano passado e nós não quisemos lançar porque havia as eleições. Poderia parecer que a gente queria fazer algum tipo de defesa política. Dizíamos: “Vamos esperar a poeira baixar”. A poeira nunca baixou. Mas é fundamental entender que, com ou sem crise econômica, existe uma mudança histórica. O Bolsa Família trouxe uma mudança de autoestima para as pessoas. E isso não acaba de um ano para o outro.

Por que acha que tantos brasileiros questionam o financiamento – ou a própria validade – do Bolsa Família?
Prefiro acreditar que seja desinformação. O cara que mora numa mansão, tem cinco carros, uma lancha e acha errado ter um programa que vai dar 70 reais por mês para alguém não morrer de fome… dizem que o Bolsa Família vicia, que o beneficiado fica preguiçoso. Mas o que vi foi o contrário. As pessoas trabalham. E há uma falsa ideia de que o Bolsa Família supre todas as necessidades. O programa dá o mínimo. O mínimo para não se ter fome. Quero acreditar que todo esse incômodo em relação ao Bolsa Família seja porque muitos de nós ainda não viu alguém passando fome.

Parte desse incômodo não vem da impressão de que o progresso em relação a outro aspecto essencial para a redução da desigualdade, a educação, não andou na mesma velocidade?
Sim, mas esse incômodo não pode sinalizar a exclusão dos programas de assistência social. Não sou defensor de partido. Não sou membro do PT. Mas acredito que nada funciona se as pessoas estão com fome. Acho que, sim, falta um lastro. Um contraste que percebi ao fazer o documentário foi entre duas cidades próximas, no Ceará e no Piauí. Separadas por 50 quilômetros e por um mundo. Em Tauá, no Ceará, você tem a sensação de progresso e quando pergunta “quais são seus sonhos?” todos têm algo a dizer. Em Aparecida, no Piauí, repetíamos a pergunta e recebíamos o silêncio. A diferença está na educação. Na cidade cearense há escolas bem equipadas, cursos do Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico). Na cidade do Piauí, não.

O economista Ricardo Paes de Barros, um dos mentores do Bolsa Família, diz que a questão da educação é a falta de dinâmica. Não reproduzimos o que dá certo…
Exatamente. Por que não reproduzir, em Aparecida, o modelo de Tauá? Há dez anos, a gente tinha mais pobres do que analfabetos. Todo mundo acreditava que diminuir o analfabetismo seria mais fácil ou rápido, porque todos sabiam o que fazer. Mas todos acreditavam que reduzir a pobreza seria mais complexo. Agora, o Brasil tem menos gente na miséria do que analfabetos. E quando você tem educação, a coisa flui. Em Tauá, e em cidades vizinhas, as pessoas fervilham de ideias. Há três anos, toco um projeto de oficinas cinematográficas na região com (os diretores) Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, e é uma ebulição forte.

Como funciona esse projeto?
Ele está ligado ao (Centro Cultural) Dragão do Mar. A cada ano, a gente trabalha com seis diretores estreantes. Nem sempre são jovens. Já teve gente de 60 anos. Desenvolvemos com eles roteiros, longas. E muitos já foram premiados. Meu sonho de vida é desenvolver isso na Bahia.

Já apresentou a ideia aqui?
Já falei com muita gente. Ainda não teve efeito, mas não perdi a esperança. Seria uma forma de movimentar o cinema baiano. Vendo o que acontece em Pernambuco ou no Rio de Janeiro, sinto que o movimento de cinema, na Bahia, ainda não é do tamanho que o estado merece.

O núcleo de cinema de que você faz parte, planejado para 2016, na Bahia, não será uma forma de fomentar o cinema local?
É, no ano que vem, eu, Lázaro (Ramos), Wagner (Moura), (o cineasta) Bernard Attal e um grupo de produtores e roteiristas pretendemos preparar seis roteiros de longas. É uma parceria com produtoras locais, patrocinada pela Ancine.

Os filmes abordarão Salvador?
Não necessariamente. O importante é que os roteiros serão produzidos na cidade, com gente da cidade. Mas eu adoraria me debruçar sobre Salvador novamente. Já moro em São Paulo há alguns anos e sempre volto para escrever. Passo três, quatro meses isolado na Praia do Forte. Não gosto de perder o vínculo.

Você começou no cinema num momento em que as dificuldades da era Collor começavam a ficar para trás. Como avalia o mercado nacional desde então?
Existiam dois polos muito frágeis no Brasil. O primeiro era o desenvolvimento de projetos. Isso melhorou muito. O outro era a distribuição. E esse continua um problema. Dá mais trabalho lançar um filme do que fazer três no Brasil. É uma luta. Outro dia, conversando com (o diretor) Hector Babenco, falávamos da energia necessária para lançar um filme. Eu acho que regulamentar o mercado de exibição para impedir a monocultura precisa ser o próximo passo do cinema brasileiro.

Você viajou pelo Nordeste em diferentes momentos da carreira. Sobre a última viagem, disse que viu uma região em que cavalos foram substituídos por motocicletas. Essa mudança de cenário é apenas uma atualização de velhos contrastes?
É difícil responder. Nos anos 1990, viajei durante meses por alguns dos lugares mais isolados do país em busca de locações e elenco para Central do Brasil. No início dos anos 2000, fiz isso para Abril despedaçado. E, agora, cruzei o Nordeste em busca de locações para um épico sobre a história de Padre Cícero, projeto que, por enquanto, está parado. Há uma mudança clara. Cidades com energia elétrica, antenas parabólicas, celulares. Há uma tendência nossa, de quem vive nos centros urbanos ou tem nível de escolaridade maior, de condenar essa ascensão social pelo consumo. Mas todos nós já temos as nossas geladeiras, celulares e TVs a cabo em casa. Claro, uma mudança que deveria vir acompanhada de outras, mas que, sozinha, já não é pouco. O que acredito é que esteja no ar, hoje, certa insubordinação. Você pode ter cidades nordestinas dominadas por famílias de políticos, por oligarquias, ou por uma tradição castradora, mas elas estão ficando raras. O Nordeste bovino, atrasado e oligárquico é algo da mente de quem não o conhece.

Uma pesquisa da socióloga Walquíria Leão Rego e do filósofo Alessandro Pinzani, de 2013, mostrou que 70% das mulheres beneficiadas por programas sociais veem como um favor, e não como um direito. Essa percepção permanece?
Sim, mas, aos poucos, as pessoas estão sendo informadas. E há uma mudança clara de concepção entre gerações. Os filhos compreendem quais são seus direitos. Não aceitam uma divisão por castas e questionam o lugar da pobreza. Há um discurso de maior autonomia, liberdade, independência. Talvez seja o que mais assuste os que são contra os avanços sociais da última década.

Uma tecla batida nos últimos meses é a de que o Brasil está polarizado – esquerda x direita, ricos x pobres, sul x nordeste. Concorda com essa polarização?
Há um acirramento de opiniões. Essa histeria, esse ódio que despolitiza, cria um cenário perigoso para qualquer um dos lados que lance mão desse discurso. Não vejo o país dividido. Na tese do país dividido, onde entram os milhões que não votaram nem em Dilma nem em Aécio? Acho que a narrativa da polarização serve muito bem a alguns interesses, mas é falha para a interpretação da atual realidade do país. Acho que o político que não for capaz de discutir política e sofisticar seus argumentos na hora de disputar o voto não chegará muito longe.

Em setembro, o escritor Ignácio de Loyola Brandão publicou um texto intitulado Quem vai filmar o caos nojento da política? Por que o nosso cinema, embora trate de nossas feridas sociais, como em Que horas ela volta? e O Som ao redor, ainda se volta pouco para o caos em Brasília?
Talvez a gente ainda esteja atrás da história ou da melhor forma de contá-la. Tem algo complicadíssimo que é a lei, que só permite que um filme retrate uma pessoa mediante  uma autorização prévia. Acho difícil o Collor autorizar um filme sobre o Collor. Há, por outro lado, a ficção que sugere o que acontece em Brasília.

Você filmaria sobre corrupção?
Daqui a alguns meses, a Gullane Entretenimento iniciará a produção de alguns filmes só sobre corrupção. Eu estarei nesse projeto e, possivelmente, assinarei a direção de um filme. A produtora já comprou os direitos autorais de seis livros sobre o tema. Há boas chances de se quebrar esse jejum no cinema nacional.

A política, em Brasília, cabe melhor numa chanchada ou num filme trash?
Brasília passeia por muitos gêneros, mas há sempre um viés dramático. Dirigir um filme sobre as altas rodas, corrupção e políticos será novo, porque sempre filmei pessoas com poder de decisão limitado, que a gente muda de calçada para não encontrar. Meu interesse recai sempre sobre pessoas à margem.

E o que o fascina nelas?
A possibilidade de mostrar que elas não são diferentes.

 

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