Apesar das flixes, dos streamings, das skies e youtubies, algumas locadoras de DVD seguem firmes. Esta reportagem da revista Muito (suplemento dominical do jornal A Tarde) visitou locadoras em Salvador.

Revista Muito
edição nº 524
26 de agosto de 2018
Texto: Daniel Oliveira
Fotos: Luciano Carcará

Versão em PDF (2,9 mb): https://bit.ly/2D2ceFc
Versão original em A Tarde: https://bit.ly/2OsFZjM

 


Não é o fim: as poucas locadoras de vídeo que resistem em Salvador mantém clientes fiéis

 

“Estava por perto e resolvi passar aqui na Vídeo e Cia para matar a saudade”, diz o professor Wellington Guimarães sobre a locadora de vídeo no Largo Dois de Julho, uma das poucas que existem atualmente na cidade. Após mudar para o Imbuí, bairro relativamente distante do Centro, o rapaz diminuiu a frequência por lá. “Agora que a única locadora do meu bairro fechou, quis passar aqui. Estou nostálgico”, afirma, com humor, antes de sair sem levar um filme. Por quê? “Não vou ter tempo para devolver depois”.

O mercado de locadoras em Salvador vive um estágio peculiar. Alguns anos depois de ter centenas, quiçá milhares de lojas na cidade – mais de uma em cada bairro da cidade, pelo menos –, hoje são pouquíssimas as que resistem. Aliás, no mundo inteiro. A pirataria e o compartilhamento online em sites de download, junto com a expansão dos aplicativos de streaming e dos canais pagos, contribuíram nesse processo.

No último mês de julho, a multinacional americana Blockbuster, que durante alguns anos teve uma franquia na capital baiana, anunciou o fechamento de duas das suas últimas três lojas. O acontecimento repercutiu no mundo inteiro. Há pouco mais de 10 anos era a maior franquia de locadoras do mundo, com aproximadamente nove mil estabelecimentos, hoje tem apenas um em atividade, na cidadezinha americana de Blend. O fato é uma evidência do quanto esse mercado, nas últimas duas décadas, transformou-se. De uma grande força, presença e amplitude, tornou-se um segmento específico e localizado.

A história de que “locadora vai acabar” ou de “mercado em extinção” é um caminho do papo que não agrada ao dono da Vídeo e Cia, José Jonas Soares. Logo que a reportagem entrou na loja e se apresentou, ele disse, contundente e afirmativo: “Se for matéria para colocar somente para baixo, é melhor não fazer, porque a realidade não é como, muitas vezes, dizem por aí. Está dando para levar”. De fato, embora não seja um mercado em ascensão, as locadoras que persistem funcionam e têm a sua clientela, algumas com 500, outras com 400 consumidores ativos mensalmente e outros milhares cadastrados.

Segundo o proprietário, o acervo da Vídeo e Cia conta com cerca de 20 mil títulos, o mesmo número de fichas de clientes. Os mais procurados são os lançamentos, os filmes de ação, aventura, seguidos dos clássicos. Além desses, o catálogo tem muitas opções de comédia, produções brasileiras, terror e eróticos, entre outros. O que continua atraindo os clientes, de acordo com Jonas, é o hábito cultivado de ir à locadora e tudo que envolve garimpar e conversar sobre cinema.

A empresária Ana Paula Dias tem um catálogo atualizado e planos de diversificação
A empresária Ana Paula Dias tem um catálogo atualizado e planos de diversificação

“O bom é procurar as raridades, aqui tem quase todos de  Almodóvar, um diretor que gosto muito. Para alguém que está começando a ter contato com cinema, isso é ótimo. Pegar a obra completa de um diretor e passar um período assistindo”, diz Wellington. Na época em que a prova do vestibular da Universidade Federal da Bahia cobrava alguns filmes, existia uma seção específica na locadora com as produções indicadas. “Separava Vidas Secas, O Cortiço e muitos outros”, complementa Jonas, no ramo há mais de 25 anos.

Programa off-line
Uma característica que permanece é o vínculo com o dia a dia do bairro, ainda muito marcante nas locadoras. “A maior parte dos clientes é da região. Alguns vinham aqui criança, adolescente, ainda com os pais, e hoje trazem os filhos. São gerações que se renovam”, conta o proprietário. Atualmente, a locadora também trabalha com compra e venda de filmes, o que já diversifica e amplia o negócio, tanto em sites de comercialização, como na própria loja.

A dona de casa Patrícia Garcia, por exemplo, não assiste a filmes online e prefere comprar do que alugar. “Não gosto de internet, não uso mesmo. Moro perto, na avenida Sete de Setembro, então venho comprar, tenho meu aparelho em casa. Escolho o filme e assisto quando quero na televisão”.

Para Jonas, a locadora atrai um público particular, formado por quem não utiliza as plataformas de streaming e também por cinéfilos. “Isso é positivo, o cotidiano hoje ficou até melhor. As pessoas que vêm aqui gostam mesmo de cinema”, afirma Jonas, enquanto, na sequência, recorda da época em que “tinha cinco funcionários e ainda assim formava fila na loja”, deixando no ar certa ambiguidade na sua visão acerca da mudança.

Orgulha-se da fase de auge e esplendor comercial, quando, com certo exagero, “a concorrência era de mais de 10 lojas só no Dois de Julho”, porém também faz questão de afirmar a resiliência e os aspectos positivos do novo momento. Do ponto de vista de quem consome, o preço da locação praticamente não mudou com os anos: filmes do catálogo R$ 4, e lançamento R$ 6. Já o prazo de devolução é mais flexível.

Ainda em transição, a Fantasia Vídeo era uma conhecida locadora no bairro do Matatu. Fazia parte de uma rede com outras cinco com o mesmo nome em Salvador e região metropolitana. Fechou há dois anos e atualmente é uma gráfica, homônima. Por conta dos programas de fidelidade com os clientes, tem apenas uma estante com filmes recém-lançados. O antigo gerente Reginaldo Carvalho, administrador, que trabalha no mesmo local há 20 anos, explica que até dezembro as atividades de locação serão encerradas.

“Tínhamos 36 mil clientes cadastrados e chegamos a ter oito funcionários somente de balcão. E isso num contexto de mais de quatro mil locadoras regularizadas e o dobro informal. Nunca fui para um lugar do Brasil e não encontrei um cliente da Fantasia. Falei isso na lua de mel para minha esposa e, quando fechei a boca, veio um casal de clientes no meio de uma duna deserta. Só tinha mato, passarinho e os dois vindo em nossa direção. Mas o declínio começou a ocorrer entre 2005 e 2008, por conta dos canais fechados, que quebraram tanto as locadoras como a pirataria”, fala Reginaldo, que diz ter saudade de trabalhar com os filmes.

Café com locação
Com muitos anos de experiência na área, a empresária Ana Paula Dias deseja estender o alcance da Home Vídeo, locadora no Jardim Apipema, em Ondina, com catálogo em constante atualização, de mais de oito mil filmes. Fica aberta todos os dias. Recentemente, a dona livrou-se dos “vídeos eróticos”, que eram organizados numa prateleira ao fundo da loja, a  famosa ala proibida, e no lugar vai montar um café.

Jonas Soares tem 20 mil títulos na loja do Dois de Julho
Jonas Soares tem 20 mil títulos na loja do Dois de Julho

“Não estavam tendo saída, esses vídeos circulam por WhatsApp e outros aplicativos, e planejava montar a cafeteria. Já comprei as mesinhas, as coisas. Em setembro vamos inaugurar”, promete a proprietária, que na fase anterior à do seu negócio, foi gerente da Vídeo Hobby – rede de locadoras soteropolitana. “Como já tinha uma relação com a área, quando fechou resolvi continuar”. Ela relata que os clientes , em média 300/400 mensais,  não são “necessariamente nostálgicos e, inclusive, têm Netflix”, mas gostam de ir à locadora e escolher os filmes in loco, olhar a capa, ler a sinopse.

“São propostas diferentes. Os filmes saem das plataformas. Para as séries, realmente vale a pena, algumas são boas. Mas a parte de filmes é muito fraca”, opina. O público, segundo Ana Paula, é variado, de jovens a pessoas idosas.

“Muita gente acha que só velho vai para locadora hoje em dia, e não é assim. Com a diminuição da quantidade de lojas, vem gente até de bairros mais longes, como Horto Florestal, Brotas, Imbuí, Costa Azul”, lista a empresária, que adotou um método de informar os clientes, todo mês, sobre os lançamentos, por mensagem em aplicativo. Já o sistema de locação pode ser por filme ou então cartela; “60% utilizam o segundo”, diz. Ao adquirir, o consumidor ganha um crédito (e descontos) para utilizar. “Gosto muito desse trabalho, pretendo continuar e colocar outras coisas complementares”.

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