Entrevista do escritor francês Laurent Desbois ao jornalista Adalberto Meireles sobre o livro A Odisseia do Cinema Brasileiro. Publicada no jornal A Tarde em 11 fev 2017.
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“O Cinema do Brasil é sempre um recomeço”

 

Laurent Desbois conta que quando chegou ao Brasil pela primeira vez, em 1996, quatro filmes o interessaram muito: Tieta do Agreste, de Carlos Diegues, Quem Matou Pixote, de José Joffily, O Judeu, de Jom Tob Azulay, e Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas. Desde então, não parou mais de ver filmes brasileiros. Serge Toubiana, então diretor do Cahiers du Cinéma, o convidou para ser correspondente da revista. De 96 a 2001, e a partir de então, acumulou muita informação. O resultado está em A Odisseia do Cinema Brasileiro – Da Atlântida a Cidade de Deus, publicado na França em dois volumes em 2010, que a Companhia das Letras lança agora no Brasil. É o olhar de um estrangeiro sobre o cinema brasileiro. E que olhar! Desbois não deixa de mergulhar nos primórdios, quando Afonso Segretto fez as primeiras imagens a bordo do navio francês Brésil, em 1898, na Baía de Guanabara, mas concentra-se no período descrito no subtítulo com um enfoque profundo na chanchada, Cinema Novo,Tropicalismo, Cinema Marginal e na Retomada. Mas nada que entedie o leitor. Ao longo de 574 páginas ele percorre a história misteriosa e enigmática do cinema pelo qual se apaixonou. A seguir, trechos da entrevista com o autor.


A Odisseia do Cinema Brasileiro


Autor: Laurent Desbois

Nº de páginas: 574

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª (2016)

Veja índice e 1º capítulo gratuitamente

 

É um título que nos conduz à mitologia grega. Fale um pouco sobre isso.
Tem 12 capítulos como os 12 cantos da Odisseia [poema épico de Homero]. Essa coisa mitológica é porque eu tenho paixão pelas culturas latina e grega. Achei que combinava muito bem, essa coisa de Odisseia, porque o cinema brasileiro nasceu num barco, num navio. E também depois esses títulos mágicos, Continente Perdido… Atlântida, o filme Cidade de Deus. Tinha alguma coisa assim para usar no livro, essa coisa irracional, um pouco mítica, achei que combinava muito bem com o cinema do cineasta de Deus e o Diabo na Terra do Sol. O título da primeira versão em francês era Os Sonhos de Ícaro, chegava muito perto e caía, e depois, com a Retomada, O Lamento da Fênix. E na época do Collor de Mello, que tudo parou, teve a morte do cinema, durante dois anos, um período em que quase tudo morre. Então, toda essa aproximação com a mitologia grega combinava com o projeto. Essa história um pouco misteriosa, enigmática do cinema brasileiro.

Um recorte cobrindo cerca de 60 anos do cinema brasileiro, mas o livro acaba se estendendo aos primórdios, às primeiras imagens feitas no Brasil.
Não dava para falar da Atlântida sem falar de todos os projetos, porque na verdade a história do cinema brasileiro é um eterno retorno. Estão sempre construindo, reconstruindo. Então, ao falar da Atlântida, tinha que falar que sempre teve sonhos assim, a Atlântida não nasceu do nada. A história do cinema brasileiro até hoje é sempre um recomeço, uma reconstrução. O que aconteceu nos anos 20 aconteceu ainda agora. Os ciclos de cinema em Pernambuco, na Bahia, sempre tiveram pioneiros tentando inventar, muitas vezes sem saber, reinventar uma linguagem do cinema.

Os ciclos de cinema em Pernambuco, na Bahia, sempre tiveram pioneiros tentando inventar

 

Há uma curiosidade em torno de que o Brasil nunca ganhou um Oscar; apenas uma Palma de Ouro com O Pagador de Promessas, em 1962. No livro, você aborda questões concernentes tomando como exemplo Orfeu Negro [ou Orfeu do Carnaval, 1959], que ganhou os dois prêmios. Acha que a crítica menosprezou o filme?
Aqui no Brasil, porque teve uma coisa muito ruim (é o único filme na história que ganhou todos os prêmios importantes: Cannes, Berlim, Moscou, o Golden Globe, Nova York, Oscar), na verdade, sempre concorreu com uma bandeira francesa, mas é um filme franco-brasileiro. Mas todo o elenco é negro, brasileiro (só a atriz principal, Marpessa Dawn), mas todo o resto: Breno Mello, Lea Garcia, Cartola, que aparece. Os atores do filme são negros brasileiros. Lea Garcia é uma das melhores atrizes do Brasil, que fazia parte do Teatro Experimental do Negro. A música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Um filme que, como explico no livro, está no cruzamento de muitos movimentos. Nouvelle Vague, Cinema Novo,Bossa Nova. Esse filme que criou essa imagem mítica e linda da Cidade Maravilhosa.Isso virou depois folclórico, mas no momento do filme não era. É um filme que tem uma alma brasileira, porque é uma declaração de amor de Marcel Camus para o Brasil. Mas o filme sempre concorreu na bandeira francesa. E isso não foi uma coisa boa. E também como estávamos na época da construção de Brasília, um Brasil que queria ser mais branco do que negro, a imagem do filme feito na favela, todo mundo era negro, a classe média e a elite branca não queriam exportar essa ideia do Rio. Mas tem muitas razões para o fato do filme não ter muito boas criticas aqui.

A trajetória critica dele se parece um pouco com a de O Pagador de Promessas, que também foi alijado pelo pessoal do Cinema Novo.
Foi muito importante a Palma de Ouro. O Pagador de Promessas era um filme na tradição dos filmes da Vera Cruz, mas foi muito importante para desenvolver o sucesso do Cinema Novo fora. Não era um filme do Cinema Novo, mas foi um filme que ajudou muito o movimento do Cinema Novo fora. O Cinema Novo nunca reconheceu porque era um filme de Anselmo Duarte, uma estrela da Vera Cruz. Tinha todas as musas e musos do Cinema Novo. Othon Bastos, Norma Bengell, Geraldo Del Rei,Antônio Pitanga. Todos os atores que vão fazer depois os filmes de Glauber Rocha e todo mundo do Cinema Novo.

O Pagador de Promessas era da Vera Cruz, mas foi importante para o sucesso do Cinema Novo fora

 

No livro você faz uma revisão critica não somente da obra de Camus, mas de outros diretores, como Carlos Hugo Christensen e Walter Hugo Khoury. Existe muito para ser atualizado, revisto ou reavaliado na história do cinema brasileiro?
Acho que sim, em todas as cinematografias. Estou preparando agora um dicionário sobre a segunda chance de muitos para uma editora francesa. São filmes que na época não fizeram sucesso ou foram subestimados. Acho que é uma coisa do cinema mesmo. Porque muitos cineastas, muitos filmes, 30, 40, 50 anos depois você descobre, e no cinema brasileiro você sempre teve problema de divulgação, sempre cineastas fazendo obras-primas que não tiveram muita divulgação. Cristensen e Khoury são cineastas de alto nível e é mais fácil ver os filmes deles. Para mim foi fácil ter acesso.Mas com certeza tem outros que não conheço.

A gente tem discutido cada vez mais o cinema brasileiro e algumas fases não muito conhecidas do público.
No capítulo 7 eu falo muito do cinema marginal. É uma época muito interessante do cinema brasileiro, com filmes com uma linguagem original, umas temáticas originais e muito fortes, onde esses cineastas de forma alegórica exploram as esferas da sociedade brasileira. É uma época interessante de filmes como O Bandido da Luz Vermelha, um filme original, com uma linguagem diferente,uma época muito importante, com Zé do Caixão, o cinema de terror brasileiro, e depois você vai ter o cinema Terrir com Ivan Cardoso. Tem muita criatividade. Um cinema que se fez sem dinheiro, que depois vai ter um lado da pornochanchada, um lado erótico, mas um cinema muito interessante e específico, porque tem uma coisa genuinamente brasileira.

Da fase da Retomada para cá o que acha fundamental? Qual a sua opinião sobre o cinema que se produz hoje no Brasil?
Uma Retomada de 15 anos, que começou em 1994, 95, com Alma Corsária (Carlos Reichenbach) e Carlota Joaquina (Carla Camurati) e até 2010, com Tropa de Elite 2 sempre se falava na Retomada. Uma Retomada já entrando na adolescência, mais de 15 anos, teve obras que marcaram. Cidade de Deus, Tropa de Elite, mas não teve muita coisa marcante internacionalmente. Teve alguns filmes que fizeram sucesso, Que Horas Ela Volta?, Aquarius fez muito sucesso na França. Foi o Brasil que lançou a Retomada, que começou melhor na América do Sul, mas depois teve outras filmografias,outros cineastas que saíram mais, outros países da América do Sul. A Retomada brasileira não deu tudo que dava para esperar. No final do século 20, os cineastas brasileiros, por exemplo, Walter Salles, que tem um talento excepcional, não fez o que ele poderia ter feito. Fernando Meirelles também, José Padilha agora está fazendo filmes nos Estados Unidos. Vejo isso pela concorrência um pouco da televisão aqui no Brasil. A teledramaturgia é tão importante e de um nível tão bom que isso não facilita.

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