Texto de Rafael Carvalho publicado no jornal A Tarde de 6/jan/2023 sobre o legado do artista plástico e animador Chico Liberato, que faleceu na quinta-feira, 5/jan. Tive a oportunidade de comentar a importância de Chico para os animadores que trilharam o caminho que ele abriu junto com Alba.

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Adeus ao mestre do sertão animado

OBITUÁRIO Morre aos 86 anos o artista
plástico e cineasta Chico Liberato, pioneiro da
animação e das artes multimídia na Bahia

RAFAEL CARVALHO
Especial para A Tarde

As artes visuais e o cinema de animação no Brasil têm uma grande dívida com o artista baiano Chico Liberato, que faleceu na madrugada desta quinta-feira, em Salvador. A causa da morte não foi divulgada. Liberato estava internado há alguns dias e a família já se preparava para a despedida ao artista, segundo relato de uma das filhas, a atriz Ingra Lyberato.

“Meu pai sempre alimentou todos comsua paixão pela arte e principalmente com sua humanidade e ética espiritual. Ele acreditava mais no potencial de cada pessoa do que elas mesmas. Seus feitos como pessoa pública estão registrados na imprensa, mas sua influência amorosa e edificante está registrada em muitos corações. Chico sempre foi luz, farol”, afirmou Ingra para o A TARDE.

Como artista visual, Liberato foi desenhista, pintor, escultor, gravador, cineasta e designer gráfico, o que lhe rendeu a produção de uma infinidade de peças artísticas das mais variadas expressões. Liberato compunha a segunda geração de artistas modernos na Bahia e destacou na sua criação os símbolos, mitos e traços socioculturais da vida nordestina.

“Chico Liberato desenvolveu relevantes atividades tanto nas artes plásticas e audiovisual, quanto no fortalecimento e renovação do meio artístico ao integrar a equipe da Bienal Nacional de Artes Plásticas (Bienal da Bahia), em 1966, por exemplo, ou a exposição intitulada Tempo Brasileiro em Arte, ocorrida na Galeria Convívio, também em 1966”, destacou Dilson Midlej, professor de História da Arte da Escola de Belas Artes da UFBA.

Com isso, podemos entender o empenho não apenas artístico de Liberato nos efervescentes anos 1960, como também a sua participação como gestor cultural. “Ele foi um dos principais articuladores desse movimento porque, naquela época, ele era o artista baiano que tinha penetração no eixo Rio-São Paulo. Já fazia exposições, conhecia todos os artistas. Então ele teve a missão de convocar os amigos do Rio e de São Paulo para que, aqui na Bahia, fosse organizada uma bienal de envergadura nacional”, observou um de seus filhos, João Liberato.

Posteriormente, Liberato dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), tendo permanecido no cargo por doze anos (1979-1991).

Cena de Ritos de Passagem (2014), segundo longa animado

Caminhos da animação

Já o trabalho de Chico Liberato no cinema de animação remonta ao início dos anos 1970. Por essa época, ele iniciou a produção de uma série de curtas animados e trabalhos experimentais, como O que os Olhos Veem (1973), Pedro Piedra (1975), Muçagambira (1982) e Carnaval (1989), entre outros.

Muitos destes tiveram lugar cativo nas históricas sessões das Jornadas de Cinema da Bahia, evento organizado por Guido Araújo, para o qual Liberato também realizou os cartazes de apresentação, vinhetas e materiais gráficos diversos por muitos anos.

Mas a consagração de Liberato no cinema acontece mesmo em 1984, ao lançar o primeiro longa-metragem de animação feito na região Nordeste – e o terceiro realizado no Brasil. Boi Aruá é, desde então, um clássico do gênero e um marco no cinema nacional por reproduzir, com cores vistosas e grande vigor criativo, o imaginário sertanejo entranhado na cultura nordestina, criado a partir
de 25 mil desenhos feitos a mão. Futuramente, em 2014, lançaria ainda um segundo longa, Ritos de Passagem.

“Considero Chico Liberato um dos maiores artistas brasileiros, não somente da animação. Seus trabalhos e sua vida são inseparáveis, têm a força da verdade e da vontade artística. Tive a honra e o prazer de compartilhar momentos valiosos com Chico na busca da construção de um caminho para a animação brasileira, desde os anos 1980. Ele sempre apresentava ideias e conselhos valiosos para a valorização do trabalho autoral, da preservação das culturas locais”, pontuou Marcos Magalhães, animador e um dos fundadores do festival Anima Mundi.

’A Vida é da Cor que Pintamos’. Esse era o lema do artista plástico e cineasta Chico Liberato, um artista ativo, dotado de personalidade carismática e extremamente gentil. Para o cinema, sua criação Boi Aruá pegou a todos de surpresa. Ninguém esperava uma animação tal aquela em 1983. Um marco, criação incontornável e histórica. Espero que os mais novos saibam apreciar tamanho talento. Que o pioneirismo de Chico Liberato não se perca”, exortou o cineasta Cláudio Marques.

Já o animador baiano Fausto Júnior destacou a importância de Liberato para a formação dos artistas de uma nova geração: “Além de pioneiro do cinema de animação no Nordeste, Chico abriu portas para muitos que vieram nas décadas seguintes. Não apenas realizando filmes, mas também promovendo oficinas, debates, mostras de animação. Chico tem um traço inconfundível, utiliza cores vibrantes, iluminação com forte contraste, recriando o universo do sertão nordestino e a diversidade cultural brasileira”.

Chico e Alba, a fiel companheira, também artista visual e poetisa, em sua casa e ateliê: “Ele sempre foi luz, farol”, diz a filha Ingra

Homem das artes

Muitas das obras de Chico Liberato estão reunidas no ateliê que é a própria casa de Chico e Alba, a fiel companheira, também artista visual e poetisa. É possível fazer uma visita virtual por esse acervo no site oficial do artista (www.chicoliberato.com.br) e também acessar informações e vasta documentação sobre vida e obra.

Não só as peças visuais, como gravuras, pinturas e esculturas estão acessíveis online, e também os story boards de produção dos filmes de animação e farto material fotográfico – como aquele que registra uma viagem ao sertão nordestino para a pesquisa de produção de Boi Aruá.

“Chico Liberato sempre foi o artista da essência. Suas obras transitavam entre um conceito extremamente simples que abrigava uma complexidade fascinante. O traço preciso, as cores vibrantes, o movimento, que derivou para animações fantásticas e originais, fizeram dele um dos mais vibrantes artistas de sua geração. Vamos dignificar e perpetuar esse legado”, defendeu Fernando Guerreiro, presidente da Fundação Gregório de Mattos.

O filho João resumiu bem a busca artística e pessoal de Liberato: “Todas essas iniciativas caracterizam-no, na essência, como um artista de vanguarda. Um artista pioneiro que não via dificuldades nas coisas. E se lançava nesses sonhos de experimentar”.

Em 2021, Liberato conversou com A TARDE a respeito de uma mostra com alguns de seus filmes na plataforma Itaú Cultural Play (onde Boi Aruá está disponível). Na ocasião, já coma voz embolada, mas nunca vacilante, categorizou: “Minha obra não é de influência apenas sertaneja, é brasileira. O meu grande amor é a cultura nacional, eu me sinto dentro dessa vivência. Minha linguagem é o Brasil”.

COLABOROU EQUIPE CADERNO 2+


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