.

Artigo de João Paulo Barreto para o Caderno 2 do Jornal A Tarde.
Domingo, 3/ nov de 2019.


Com entrada franca, começa nessa segunda e segue até domingo (10), na imprescindível Sala Walter da Silveira, a terceira edição da Mostra do Filme Marginal. Importantíssima em seu perfil de afirmação de um cinema contestador, a Mostra chega ao seu terceiro ano em um 2019 que mais parece ser 1964.

Após passar por uma censura de três de seus filmes no Rio de Janeiro, o evento chega a Salvador com um abrangente leque de produções, dentre elas Rebento, de Vinícius Eliziário; Mente Aberta, de Getulio Ribeiro e Nosso Sagrado, de Fernando Sousa, Gabriel Barbosa e Jorge Santana. Estes foram os três filmes cujas exibições foram barradas no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), localizado no Rio, após os gestores do local vetarem as obras. Duas delas (Rebento e Mente Aberta) fazem referências diretas ao atual presidente da República.

No caso de Rebento, curta baiano que aborda questões de paternidade na adolescência e, sobretudo, a importância do reconhecimento dessa, mesmo que precoce, paternidade, a mensagem de repúdio ao governo é colocada em letreiros diretos que também saúdam a presença de Marielle Franco e Mestre Moa. Mente Aberta opta pela ironia fina ao retratar seu protagonista, não por coincidência batizado de Jair, como um homem de comportamento homofóbico, misógino e racista a questionar mentalmente as razões para ter sido deixado pela mulher.

Já o documentário Nosso Sagrado traz a questão urgente da necessidade de um estado laico e de respeito por todos os credos, uma vez que o Brasil caminha para uma república pentecostal, onde religiões de matriz africana, mais precisamente o Candomblé e a Umbanda, são discriminadas publicamente em discursos doentes pelo chefe do executivo.

BAIANOS PRESENTES

Com uma seleção que apresenta curtas e longas metragens de diversas partes do Brasil, a Mostra do Filme Marginal tem em seu amplo leque de selecionados alguns trabalhos oriundos da Bahia. Além do já citado Rebento, o cinema de gênero de terror se faz presente com A Triste Figura. Dirigido por Calebe Lopes, o filme traz, além de uma ótima ambientação dentro do viés do horror, uma pontual análise da citada influência religiosa como manipulação humana. Ao final, o resultado catártico coloca tal triste figura em uma rima visual precisa com a triste figura do pastor evangélico vivido pelo ator baiano Carlos Betão.

Na abertura da Mostra do Filme Marginal em Salvador, dia 4 de novembro, será exibido o filme “LAMA, o crime Vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho”, seguido por uma conversa com o diretor Carlos Pronzato.

Outra obra baiana presente é o tenro documentário Motriz. Dirigido pela cineasta Tais Amordivino, o filme é uma declaração de amor à sua mãe, bem como um desenhar da relação da diretora com a labuta do cinema, colocando-a em perspectiva pelo singelo olhar de sua progenitora.

CURADORIA ATENTA

Para dois dos curadores do evento, Rafael Daguerre e Uilton Oliveira, a necessidade de utilizar a Mostra como meio de resistência, norteia o processo de seleção dos filmes. “Acreditamos que uma das características principais da nossa curadoria, é a nossa preocupação com o conteúdo dos filmes. Poderíamos chama-la de uma ‘curadoria militante’. Não somos um evento de cinema descolado das mobilizações. Muito pelo contrário: reafirmamos o nosso comprometimento com as lutas e com o enfrentamento às desigualdades políticas e sociais. Sendo assim, procuramos contemplar em nossa programação, linguagens, personagens, temáticas, problemáticas e reivindicações do audiovisual”, explicam os curadores.

Em um atual Estado burocrático opressivo e censurador, que vira as costas para a cultura e para as minorias, utilizando a ignorância e a polêmica como modo de se afirmar politicamente, a resposta da Mostra do Filme Marginal é trazer outras maneiras de se afirmar e de fazer cinema. “Os filmes da Mostra representam o cinema de guerrilha, o cinema gambiarra, produções de baixo ou nenhum orçamento, porque, obviamente, não há apoio suficiente ao cinema no Brasil. São filmes de boa qualidade que evitam a burocracia, as hierarquias autocráticas e os formalismos do cinema mainstream. Precisamos romper com a ideia de que o cinema independente ‘não é cinema’”, afirma Uilton.

“Vivemos uma realidade distópica, com um governo que se coloca em uma prática fascista aberta – apoiando inclusive a tortura e a execução sumária de pessoas que vivem nas áreas pobres do país. Não queremos com isso dizer, que esta prática seja uma novidade no Brasil. O terrorismo de Estado, o genocídio da população negra, a misoginia, o extermínio da população LGBT, o massacre dos indígenas, em diferentes regimes e governos, fazem parte do DNA deste país”, finalizam os curadores.

O cinema tem por obrigação, ainda mais hoje, de se afirmar como resistência.

3ª Mostra do Filme Marginal
4 a 10/nov de 2019
Sala Walter da Silveira
Salvador (BA)

Veja a programação em
mostradofilmemarginal.com

facebook.com/mostradofilmemarginal

instagram.com/mostradofilmemarginal

0